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A tua vez



 Todas as histórias começam por “Era uma vez…”, mas esta é diferente. É a tua vez e não uma – como se de alguém indiferente se tratasse. Foste tu, és tu e sempre serás tu!

 Conheceste-me numa altura frágil da minha vida, em que eu estava céptica a tudo e a todos. Há uns anos atrás, uma amiga minha tinha feito uma carta astral – a minha, por sinal. Escusado será dizer que não acreditei em nada. Mas, se naquela altura soubesse o que sei hoje, podes crer que tinha sentido naquele exacto momento de mostra de resultados, um misto de sensações: medo e esperança. Pelo menos, ainda continuo a sentir uma delas - hoje em dia - e a outra, já não a sinto. Nem quero e recusar-me-ei a sentir, seja em que altura for.

 Ignorei essa carta astral por anos e anos, mas em 2001 era inevitável parar de a ignorar. Considerava-me uma Mulher bem-sucedida (em todos os campos), era saudável e imaginava um futuro extraordinário com a pessoa que – naquela altura – namorava, mas de repente tudo mudou. Foi-me diagnosticado um tumor e se eu não era operada rapidamente, as probabilidades de sobreviver eram quase nulas. Ao saber deste diagnóstico, chorei… Não vou mentir. Contudo, recusava-me a aceitar que estava doente e que ia desistir, porque eu nunca fui assim. Eu tinha noção que as pessoas à minha volta e que me conheciam me viam como uma verdadeira “mulher de armas”, porque não ver-me assim? Estava nas tintas para o que as pessoas achavam de mim, mas eu precisava de acreditar nisso por mim e pela minha saúde.

 Nesse mesmo dia em que recebi o diagnóstico, liguei a uma amiga de infância. Por uma simples razão: nós tínhamos nos conhecido na fase mais pura e inocente das nossas vidas, se ela me conheceu no auge da minha inocência, então teria todo o gosto de me ajudar nesta fase tão frágil. Qualquer toque, fosse ele de que intensidade fosse, deitava-me abaixo. Fomos tomar café a um local ao pé da praia; para mim, ver o mar é algo terapêutico. As ondas embalam os meus pensamentos menos bons e levam-nos para longe.

 Durante toda a conversa, eu reparei que estava um sujeito a ouvir-nos e, assim que ele chegou ao café, arrepiei-me. Não percebo porquê, até hoje penso que o arrepio estranhíssimo que senti foi um sinal que não soube interpretar naquele dia – por ser uma céptica do pior.

 A certa altura, o tal sujeito dirigiu-se a nós e disse que, sem querer, tinha ouvido a nossa conversa e referiu que me podia ajudar. Creio que o medo era tanto que me deixou acreditar em todas as hipóteses de salvação que me apareciam. Questionei-lhe como ele o iria fazer e ele – simplesmente – sorriu e disse que possuía contactos naquela área que me poderiam ser bastante valiosos. Fiquei surpresa, confesso! Questionei-lhe, novamente, no momento a seguir quem? Quem me poderia ajudar e tirar-me daquela que foi a fase mais desesperante da minha vida? O sorriso dele rasgou-se ainda mais e num tom bastante confiante respondeu-me: “Eu! Sou oncologista e posso-a ajudar. Só tem é que estar disposta a isso”. Naquele momento, só conseguia olhar para a minha amiga e ela mostrando-se estupefacta com toda aquela situação, aconselhou-me a aceitar a proposta. Disse-me que não perdia nada, que valia a pena o risco… Pedi-lhe o contacto e ele deu-me. Retribuiu-me com um outro pedido: estar na manhã seguinte, no consultório dele. Assim que me deu o seu cartão com o contacto escrito, o tal oncologista desapareceu.

 Fiquei a digerir toda aquela situação, durante o resto do dia. Chegada a noite, fui para casa. Foi quando – finalmente – consegui ver o telemóvel e tinha algumas chamadas não atendidas e mensagens não respondidas. Era o meu namorado. Estava preocupado comigo! Mas, eu não consegui dar-lhe sinais de vida. A noite passou-se muito lentamente. Sozinha, embrulhada num cobertor e com os olhos inchados de tanto chorar. A certa altura, venci-me pelo cansaço e adormeci. No meio de tanto medo e inseguranças, consegui adormecer.

 O despertador acordou-me antes que desse conta que o dia nascera. A luz que passava por entre os espaços livres da persiana iluminavam a trajectória que levo da cama à casa-de-banho. Tomei banho, vesti-me e preparei-me de modo a estar a tempo e horas, no consultório de um homem que mal conhecia. Durante todo este processo, recusei-me a olhar uma única vez para o espelho… A Mulher que eu via, não era eu. Não! Como é possível acontecer-me isto? O que eu fiz para o merecer?
Entrei no carro e coloquei o rádio bem alto - naquele momento, era a melhor companhia. Cheguei ao consultório e fui logo informada que o médico estava à minha espera. Abri a porta e ele esperava-me com um sorriso bem rasgado e um “Bom Dia!” que me fez valer o dia. Sentei-me na cadeira em frente à sua secretária e passou a analisar o meu caso. Mostrou-se confiante em apresentar-me o tratamento e ainda disse que tudo dependia de como eu iria lidar com isto tudo. Eu sabia lá o que pensar! Naquele momento, só queria que ele fizesse isto desaparecer num abrir e fechar de olhos. A única certeza que tinha era que tinha que confiar nele. Ele que ainda no dia anterior era um perfeito desconhecido e no dia seguinte, transmitia-me a sensação de que o conhecia desde sempre. Prometera-me que iria ficar bem e que ainda era possível, ter filhos – se um dia quisesse. Eu só sabia sorrir de nervosismo e aceitar tudo o que ele me dizia.

 Duas semanas se passaram e durante esse período, fui tomando alguns cafés com ele e os almoços juntos também se tornaram frequentes. Comecei a conhecê-lo de uma forma que ninguém conhece ninguém… Só mesmo nós. Só mesmo ele e eu. Percebi que ele era infeliz no casamento que levava. Fruto de uma gravidez durante a adolescência e talvez, impulsos de jovens imaturos, resultou num casamento que aos poucos se foi degradando. Se calhar, nunca houve casamento. Pelo menos, foi o que percebi de todas as conversas que tivéramos.

 O dia da operação chegou e cada vez estávamos mais íntimos. O meu namorado não sabia nada de mim, há duas semanas… Na minha cabeça tornava-se cada vez mais confuso quem é que era – realmente – o meu namorado.  Às 9h da manhã, estava eu na clínica do médico que me enchera de esperanças. Preparou tudo para que corresse pelo melhor e antes de me colocar a anestesia, beijou-me a testa e desejou-me bons sonhos, prometendo-me que quando acordasse ele iria ser a primeira pessoa que quem eu iria ver. E assim foi, a operação terminou e meia zonza, acordei. Durante a operação, essa imagem dele a despedir-se de mim, não me saía da cabeça. Quando acordei, olhei para o lado direito da cama e ele encontrava-se lá. Sentia a minha mão quente, quando reparei que esta estava a ser segurada pela dele. Fisicamente, estávamos unidos por essas mãos dadas; mas, num plano hiperfísico, eu sabia que havia algo mais. Que aquele arrepio que sentira não era um simples acaso e que a vida acontece enquanto estamos ocupados a planeá-la.

 Naquele momento, em que me colocaste a mão na testa e me perguntaste se estava bem, tive a certeza que nós não podíamos ficar por aqui. Tinha que haver algo mais para se justificar estas ocasionalidades todas que me tinham acontecido. Sem que eu desse conta, estava numa cama de uma clínica, com alguém que estava a conhecer e estava a ser proposta em casamento. A mesma mão que ele segurava de forma carinhosa e me enchia de esperança, foi a mesma que ele usou para fazer o pedido. Estranhamente e sem pensar duas vezes, aceitei! Foi o momento mais puro da minha vida. Esqueci aqueles que vivi na infância por uns momentos e deixei-me levar por aquele mar de amor.  
Terminei o meu relacionamento com a pessoa que estava antes do diagnóstico. Meses se passaram e a vontade de estar casada com o homem que me induziu num sono profundo aumentava de dia para dia. Contudo, o facto de ele estar casado era ainda algo impeditivo. Um ano se passou e os filhos dele completaram a maioridade, ele esperou até essa altura para tomar a decisão do divórcio. E assim aconteceu, dois anos depois estávamos nós a casar. Na igreja onde sempre sonhei casar, com o Homem da minha vida e vestida de branco, só que desta vez, foi um vestido a sério que me encheu as medidas e não a bata branca que me obrigaram a vestir, na clínica.

 Não tardou muito e o nosso casamento deu os seus frutos. Ou melhor, deu-nos o fruto mais doce que alguma vez pude ter nas minhas mãos. O nosso filho! As duas promessas daquele homem que me um dia fora um perfeito desconhecido, tornaram-se realidade. Conheci o que é que estar bem e sentir-me ainda melhor, na minha pele e conheci a pessoa mais importante da minha vida: o meu filho. Aliás, o nosso filho.

 Hoje, se me perguntassem acerca do que eu diria há uns anos atrás se pudessem prever o que me iria acontecer, simplesmente iria rir e não acreditar no que me estavam a dizer.  Mas hoje… Bem, hoje iria rir, mas de forma a que as pessoas compreendessem que cada uma tem a sua vez. A sua vez de rir, de chorar, de gritar e até mesmo, de – simplesmente – respirar. Contudo, o que mais me fascina no meio disto tudo, não foi o facto de perceber a minha vez de quase desaparecer, mas sim o facto de ter sido a tua vez de aparecer. 

Rush

 

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